Doente crítico crônico: possibilidades multiprofissionais na preparação para alta da UTI

A UTI foi criada com o objetivo de oferecer cuidados intensivos a pacientes que apresentem estados agudos graves com potencial de recuperação.

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A Unidade de Terapia Intensiva (UTI), enquanto ambiente hospitalar de alta complexidade com monitorização e suporte avançado à vida, foi criada com o objetivo de oferecer cuidados intensivos a pacientes que apresentem estados agudos graves, ou instabilidade de sistemas orgânicos, com potencial de recuperação. Desde a estrutura física, equipamentos de alta tecnologia até profissionais capacitados que integram a equipe assistencial, tudo que diz respeito a esse tipo de unidade deve funcionar com excelência, coerência e precisão, e isso inclui tanto o processo de admissão e permanência do paciente, quanto o percurso para alta.

A criação e evolução das UTIs marcou de modo importante a história da utilização de tecnologias avançadas em saúde, e redução da mortalidade de pacientes graves. Entretanto, identifica-se uma parcela crescente de indivíduos que sobrevivem a etapa inicial do tratamento, mas não apresentam boa evolução e recuperação da fase aguda, permanecendo com dependência funcional, quadro inflamatório persistente e falência orgânica por período prolongado.

Esse perfil foi descrito na década de 1980, por Girard e Raffin, no artigo “To save or let die?”, pelo termo Doente Crítico Crônico (DoCC). Varias definições foram criadas ao longo de quatro décadas, o que dificultou a mensuração de incidência, avaliação de prognostico pós-alta e mortalidade desse grupo. Ainda assim, chegou-se a um “consenso” de critérios, que permanecem em uso atualmente, considerando definições apresentadas por Nelson (2004) e MacIntyre (2005): pacientes dependentes de ventilação mecânica por mais de 21 dias, pelo menos 6 horas diárias, e com alterações metabólicas, neuroendócrinas, neuropsiquiátricas e imunológicas, decorrentes da sobrecarga alostática e complicadores relacionados à internação. O perfil mais recorrente de doente crítico crônico, costuma ser de idade mais avançada, escores de gravidade mais elevados, comorbidades importantes, com alta taxa de mortalidade.

A FAMÍLIA NO CONTEXTO DA DCC:

Considerando os agravos e intercorrências mais comuns neste grupo e o grau de comprometimento relacionado aos mesmos, é possível imaginar o impacto emocional da síndrome para os familiares que acompanham mais diretamente o processo de adoecimento e hospitalização. As reações emocionais manifestadas pelos acompanhantes nesse contexto vão desde uma simples ansiedade reativa, até situações de ruptura psicótica, negação patológica, direcionamento da raiva à equipe assistencial, desconexão da realidade, luto antecipatório, sofrimento social, depressão, fantasias, ideias distorcidas e inúmeras outras manifestações com diferentes intensidades e consequências, que necessitam de manejo e intervenções direcionadas.

Um dos fatos que mais chama atenção no processo de acompanhamento psicológico do DoCC e seus familiares é o sofrimento intenso associado aos períodos de instabilidade, eminência de morte e incapacidades permanentes que são identificadas ao longo do processo, e acabam afetando o grupo familiar como um todo. A quebra da dinâmica habitual, a mudança das rotinas, dos vínculos sociais e profissionais, assim como alterações nos papéis familiares entre seus membros, ocasionam um período de perda da referência e instabilidade do grupo, exigindo readaptação significativa em curto espaço de tempo. Por vezes, no momento de estabilização clínica e proximidade da alta da UTI, a família já vivencia sobrecarga social, pessoal, econômica e emocional tão intensa, que acaba adoecendo junto ao paciente, justamente na fase em que poderão ser integrados ao cuidado e garantir maior proximidade com seu ente querido.

O que observamos é que, após vivenciar o estresse emocional intenso da internação em UTI, a família busca se focar na vitória tão almejada: “a alta do paciente”, deixando o resto em segundo plano. Mas este momento de felicidade vem acompanhado do confronto com a realidade, em que sairão de um contexto de contato restrito e ausência de participação nos cuidados, para a realidade de reaproximação física e observação direta do sofrimento global do paciente. É o momento que percebem que apesar de essencial, nem sempre o amor e a presença da família serão suficientes para a cura. E essa percepção dolorosa da família normalmente vem acompanhada do contato brusco com alterações físicas, cognitivas e funcionais do paciente, até então desconhecidas.

COMO PREPARAR A FAMÍLIA PARA ALTA DA UTI?

Dentro das principais reações emocionais e comportamentais identificadas em cuidadores diretos de DoCC no período de pós-alta imediata da UTI, é possível perceber que muitas demandas poderiam ser evitadas, se a família fosse realmente incluída no Plano Terapêutico do paciente. O desespero frente ao conhecimento de lesões por pressão, fraqueza muscular, impossibilidade de realizar autocuidado, déficit cognitivo e fragilidade emocional, são situações que podem ser amenizadas se trabalhadas com a família antes da alta. O cuidado ao paciente deve se estender ao grupo familiar direto, possibilitando a preparação gradativa sobre a realidade do mesmo, inclusive das circunstâncias que, para a equipe assistencial, pareçam comuns e esperadas.

A abordagem multiprofissional pode ser adaptada à realidade da instituição e profissionais disponíveis no serviço, podendo ser dividida e compartilhada, conforme a avaliação da situação global do paciente. A equipe médica tem a função de orientação de aspectos clínicos e, por mais que falar sobre prognóstico seja difícil, é essencial abordar com a família os riscos de sequelas permanentes, possibilidade de reinternações associadas à piora clínica e infecções, e alta taxa de mortalidade no primeiro ano após alta hospitalar. Cabem ainda, conversas sobre início da busca por home care e outras necessidades especiais que o paciente tenha na eminência de alta.

A enfermagem pode ser de grande importância em relação à orientação de higiene, assepsia para contato com paciente, proteção da pele, risco de queda, cuidados importantes e informações à família sobre integridade tissular prejudicada e riscos associados. Do mesmo modo, é possível orientar sobre utilização de sondas e cateteres, que podem ser considerados aversivos a algumas pessoas, esclarecendo sobre o motivo da utilização. A equipe de fisioterapia pode orientar sobre mudanças de decúbito, exercícios importantes para o paciente durante o dia, estimulação gradativa da independência, e preparo dos cuidadores para identificar alterações respiratórias associadas a excesso de secreção, considerando que a formação de rolhas de secreção ainda é uma das causas de piora do quadro e necessidade de reinternação na UTI. Apesar de não estarem à frente dos cuidados durante permanência na enfermaria, é importante que aprendam a identificar situações básicas que necessitam de intervenção da equipe, e que saibam a quem recorrer.

Considerando o tempo de ventilação mecânica e consequências associadas, a equipe de fonoaudiologia tem papel importante na avaliação e reabilitação deste perfil de paciente. Tanto no aspecto de fala quanto de deglutição, é importante que os familiares compreendam as terapias realizadas e contribuam com o processo de estimulação. O acompanhamento da nutrição e nutrologia tem não apenas o papel de suprir necessidades calóricas e nutricionais do paciente, mas também podem trabalhar em parceria com enfermagem e fisioterapia, com a indicação de suplementos e quantidades proteicas que auxiliem no processo de cicatrização e recuperação de massa muscular.

O psicólogo acaba por trabalhar permeando essas relações equipe-família, identificando as demandas emocionais emergentes, clarificando à equipe situações específicas que possam contribuir ou comprometer o processo de cuidados, assim como utilizar seu próprio vínculo com a família para trabalhar no reforço e clarificação das informações repassadas. Identificar as fases vivenciadas pela família no processo de luto/perdas decorrentes da internação é essencial para nortear a equipe assistencial sobre maneiras mais efetivas de abordagem, e interpretação mais empática e sensível de comportamentos disfuncionais.

A preparação progressiva para alta da UTI inclui informar gradativamente a família sobre a realidade física, psíquica e funcional do paciente. Considerando que, diferentemente da equipe de terapia intensiva, eles não costumam ter acesso aos momentos de higiene e rotinas de cuidados ao paciente, as visitas rápidas e restritas não são suficientes para que os futuros “cuidadores” conheçam com propriedade as necessidades atuais do doente. A atenção integral ao paciente e família faz parte da qualidade da assistência e pode interferir diretamente na prevenção de adoecimento físico e emocional dos cuidadores de Doentes Críticos Crônicos, reduzindo a incidência de transtorno de estresse pós-traumático e depressão, tão presentes nos estudos recentes (Nelson et al., 2010).

Iniciar e fechar cada etapa intra-hospitalar do paciente é responsabilidade direta da equipe e funciona como uma engrenagem cujo trabalho se inter-relaciona e interfere no resultado final da linha de cuidados. É importante ter clareza de que, para nós da terapia intensiva, o trabalho finaliza com a alta da UTI, mas, para a família, é apenas o início de uma nova realidade assustadora e desconhecida.

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Referências:

  • Girard K, Raffin TA. The Chronically critically ill: to save or let die? Respir Care 1985;30:339-347.
  • MacIntyre NR, Epstein SK, Carson S, Scheinhorn D, Christopher K, Muldoon S; National Association for Medical Direction of Respiratory Care. Management of patients requiring prolonged mechanical ventilation: report of a NAMDRC consensus conference. Chest. 2005;128(6):3937-54.
  • Nelson JE, Meier DE, Litke A, Natale DA, Siegel RE, Morrison RS. The symptom burden of chronic critical illness. Crit Care Med. 2004;32(7):152734.
  • Nelson JE, Cox CE, Esperança AA, Carson SS. Chronic Critical Illness. Respir Crit Care Med 2010;182:446-454.

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