Gravidez e infarto: uma relação preocupante?

Havia uma época em que mulheres gestantes chegavam em setores de emergência com dor torácica e eram investigadas para quase tudo.

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Havia uma época quando mulheres gestantes chegavam em setores de emergência com dor torácica e eram investigadas para quase tudo, mas na ordem de prioridade o sistema cardiovascular ficava por último nesta lista.

A incidência de infarto agudo do miocárdio (IAM) nas gestantes é muito baixa, para não usar o termo rara. Porém, no cenário da gestação, uma doença deve ser levada em consideração na investigação de dor precordial: a dissecção espontânea das artérias coronarianas (DEAC).

Responsável por mais de 40% dos infartos nas gestantes, taxa muito maior do que a observada na população geral, aonde a taxa de DEAC como causa de IAM chega a 0,4%, tal dissecção geralmente ocorre por formação de hematoma sub-intimal (hemorragia do complexo média-adventícia) ou a partir de dissecção primária da camada íntima do vaso e consequente formação do hematoma com obstrução do lúmen coronariano como causa do infarto.

Este mecanismo fisiopatológico distinto da apresentação clássica de IAM por doença aterosclerótica (DAC) vem acompanhado de maior gravidade nas gestantes, conforme artigo de revisão publicado por Havakuk e cols. no Circulation1. No período de 2000-2015 foram relatados 120 casos de IAM por DEAC em gestantes com idade média de 34±4 anos, sendo a maior parte destes (72.5%) no puerpério (até 210 dias pós parto) e o IAM com elevação de segmento ST a apresentação clínica mais comum (75%).

Ao contrário de uma população de alto risco para o desenvolvimento de DAC, a prevalência de fatores de risco ateroscleróticos neste tipo de população é baixa (histórico familiar=15% , dislipidemia=10%, tabagismo=12.5%, hipertensão arterial=5% e diabetes=4%). Foi observado acometimento da artéria descendente anterior (77%), tronco de coronária esquerda (35%) e doença multiarterial (40%), e em 29% dos casos evoluindo com choque cardiogênico, com taxa de mortalidade materna de 5%.

Mais do autor: ‘Critério de uso apropriado: quantas angioplastias coronárias são evitáveis ou mal indicadas?’

Não bastasse os marcadores de morbimortalidade demonstrados, a taxa de sucesso relatada pelos autores para angioplastias coronarianas nesta população é muito baixa (50%), fato também corroborado por registros de DEAC em não gestantes2,3.

Aspectos anatômicos como um endotélio vascular mais friável predispondo a propagação destas dissecções e a dificuldade em se certificar de que a corda guia da angioplastia esteja de fato no lúmen arterial verdadeiro (apenas métodos de imagem como ultrassom intracoronariano e/ou tomografia de coerência óptica podem visualizar a guia no interior do lúmen arterial) explicam a baixa eficácia do procedimento nesta amostra populacional. A cirurgia de revascularização miocárdica (CRVM) foi realizada em 39 das 120 gestantes, uma incidência pelo menos 10x maior que a empregada em mulheres não gestantes com DEAC2.

A dissecção pode ainda não se limitar ao território das coronárias, haja vista sua associação já comprovada com a displasia fibromuscular da camada média dos vasos.  Em quatro pacientes da casuística apresentada também foi observado dissecção espontânea das artérias vertebrais e em 1 caso da artéria torácica interna, sendo o diagnóstico destas dissecções feito por angiotomografia computadorizada após as pacientes se queixarem de distúrbios visuais e cervicalgia.

Alguns dados são relevantes neste estudo e devem ser confrontados com casuísticas importantes da literatura como a do grupo de Vancouver liderado pela Dra. Jacqueline Saw com grande experiência no acompanhamento de pacientes com DEAC. Em publicação de 2014 também pela Circulation, Saw e cols. relatam num grupo de 168 pacientes (>80% sexo feminino, não gestantes) com DEAC apresentação clínica e evolução mais brandos que a observada na DEAC relacionada à gestação/puerpério ( 26% IAM com elevação de ST como apresentação clínica inicial e nenhum caso evoluindo com choque cardiogênico e/ou óbito hospitalar)2.

Os mecanismos fisiopatológicos envolvidos na gênese da DEAC nas gestantes não é totalmente esclarecido. Alterações hemodinâmicas relacionadas ao período gravídico, assim como modificações hormonais na parede das artérias devem ser levadas em conta como: aumento no volume sistólico e frequência cardíaca, além da compressão da aorta e das ilíacas pelo  útero gravídico aumentando a resistência e tensão na parede da aorta e das coronárias. As modificações hormonais também levam a alterações patológicas na parede vascular como a fragmentação de fibras reticulares, diminuição da matriz de mucopolissacarídeos e fibras elásticas predispondo à dissecção.

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O diagnóstico é feito por meio de cateterismo cardíaco ao se evidenciar linha de dissecção, com ou sem luz falsa (impregnação de contraste), redução súbita e significativa de calibre, ou obstrução com bordas lisas e sem aspecto de doença aterosclerótica , sendo que métodos adjuntos de imagem como ultrassom intracoronariano e a tomografia de coerência óptica podem ser utilizados com o intuito de auxiliar numa eventual angioplastia coronariana, porém com risco maior de propagação destas DEAC pela manipulação do endotélio vascular friável.

O tratamento conservador, ou seja, sem angioplastia ou CRVM deve ser tentado inicialmente nos pacientes com apresentação estável, vaso aberto e de baixo risco3, haja vista a baixa taxa de sucesso das angioplastias. Porém, a maior parte da drogas empregadas no tratamento do IAM, ou são inseguras ou pouco estudadas quanto à segurança do feto, além disso não existem evidências robustas para emprego de dupla anti-agregação plaquetária e anticoagulação plena na literatura para o cenário de DEAC.

Apesar de todas as críticas/vieses pertinentes a uma análise retrospectiva, os autores demonstram com clareza a maior gravidade desta entidade (DEAC) no cenário gestacional, com maior prevalência de acometimento multiarterial, choque cardiogênico e necessidade de tratamento cirúrgico, que sempre que possível deve ser realizado imediatamente após interrupção da gestação por cesariana de urgência caso haja maturidade fetal. Algumas hipóteses surgem frente a cenário de tal gravidade: contraindicar futuras gestações, haja vista recidiva não desprezível das DEACs nas pacientes reestudadas angiograficamente?

Não utilização de terapia trombolítica no período puerperal, frente a maior chance de propagação destas dissecções levando à necessidade de CRVM num cenário predisponente à eventos hemorrágicos e manter seguimento rigoroso destas pacientes pela chance de dissecção em outros territórios vasculares como sistema nervoso central.

DEAC na gestação/puerpério
Apresentação clínica IAM com supradesnível de ST (75%)
Tratamento Transferir para centro terciário com hemodinâmica e CRVM disponíveis
Período Último trimestre e puerpério (até 6 meses)
Angioplastia coronariana com stents Taxa de sucesso baixa (50%)
Gestação subsequente Não recomendável


Referências:

  • ¹Ofer Havakuk, MD; Sorel Goland, MD; Anil Mehra, MD; Uri Elkayam, MD. Pregnancy and the Risk of Spontaneous Coronary Artery Dissection. An Analysis of 120 Contemporary Cases. Ofer Havakuk, Sorel Goland, Anil Mehra et Uri Elkayam. Circ Cardiovasc Interv. 2017;10:e004941
  • ²Saw J, Aymong E, Sedlak T, Buller CE, Starovoytov A, Ricci D, Robinson S, Vuurmans T, Gao M, Humphries K, Mancini GB. Spontaneous coronary artery dissection: association with predisposing arteriopathies and precipitating stressors and cardiovascular outcomes. Circ Cardiovasc Interv. 2014;7:645–655. doi: 10.1161/CIRCINTERVENTIONS.114.001760
  • ³Tweet MS, Eleid MF, Best PJ, Lennon RJ, Lerman A, Rihal CS, Holmes DR Jr, Hayes SN, Gulati R. Spontaneous coronary artery dissection: revascularization versus conservative therapy. Circ Cardiovasc Interv. 2014;7:777–786. doi: 10.1161/CIRCINTERVENTIONS.114.001659.

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